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terça-feira, maio 23, 2006

Foste sobre a mesa

Prometo-te que vou ser breve.

O banquete que faço de ti, da voluptuosidade dos teus braços, da formosura das tuas pernas. Num manjar divino e suculento, abro o meu apetite com o passar das minhas mãos sobre as tuas formas.
Amo-te de gula no prato onde me és servida.
Saboreio-te as coxas fartas com beijos dentadas. Mastigo-te as faces rosadas e a tua nuca. Afogo-me no vinho que vou bebendo para te degustar a carne (que antes fosse matéria). Vou-te despindo à medida da minha fome e encontro seios enchidos que petisco, carne da carne do pecado que já venho a cometer.
Amo-te de gula.
Num prato feito barriga, num umbigo que se furta ao meu apetite (porque te contrais arrepiada), és presa do predador desejo. Joelhos de queijo que vou trincando com lábios pão. Depois de te devorar, és ainda sobre a mesa. Enamoro-me dos teus olhos de avelã na doçura do teu sorriso pudim de baunilha e chocolate de prazer. Oásis de algodão doce farpado, cama de caramelo vidro. És ainda sobre a mesa depois de jantar farto de mim. Bebo café dos teus lábios e o digestivo dos teus afagos.
Cigarro.

segunda-feira, maio 22, 2006

Da forma mais democrática possível

Viva! Viva! Viva!

Diário de um anónimo I

A urgência do encontro escondeu-se no pretexto, e, no momento exacto em que escrevia o texto, apercebeu-se das palavras que nunca dizia, pois guardava-as para as escrever. Escreveu dúvida, e não duvidava do sentido que esta palavra tinha para ele, não era só mais uma, era a dúvida; escreveu amigo, e não sentiu nada, limitou-se a escrever. Precipitou-se num choro, limpou as lágrimas, escreveu morte. Nada sentiu. E estava ele à espera de sentir o efeito das palavras que nunca dizia. E se o efeito estivesse preso nos outros? Por que não o sentia ele próprio, se era ele que o escrevia? Pensou num choro, escreveu um lamento, fez um rabisco retratando a vida num boneco sem pés nem cabeça. A tinta da caneta, que ainda sobejava para uma última mentira, aproveitou-a ele para se descrever e disse a verdade. Terminou o texto com a palavra apatia. “Mas, apatia é uma má palavra para terminar um texto, que falta de ética!”, pensou. Escreveu mais duas frases para se justificar e terminou com a palavra acção. Deitou-se e procurou a posição mais confortável para dormir sobre o que tinha escrito.
No dia seguinte acordou bem disposto, tomou o pequeno-almoço e foi trabalhar…

segunda-feira, maio 15, 2006

Artista é o C......

Eu sou bom de cama, sei fazer café
ninguém reclama do meu cafuné
Mas... artista é o caralho, é o caralho!

Eu sou bom de bola, jogo com calor
Canto na viola sempre com amor
Mas... artista é o caralho, é o caralho!

Canto no banheiro sem vacilação
Já ganhei dinheiro na televisão
Mas... artista é o caralho, é o caralho!

Gosto de cinema, gosto de dançar
De fazer poemas em papel de bar
Mas... artista é o caralho, é o caralho!

Já entrei na lista de uma tal mulher
Que é capoeirista e tem samba no pé
Mas... artista é o caralho, é o caralho!

Letra e Música: Rubinho Jacobina
Intérprete: Orquestra Imperial

quarta-feira, maio 03, 2006

A Invenção do Amor

Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor·
Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com carácter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana·
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado·
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo·
Um homem e uma mulher um cartaz denuncia colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura
A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los c
onvencê-los antes que seja tarde e a memória da infância nos jardins escondidos acorde a tolerância no coração das pessoas
Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros
É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo
A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta·
...
Procurem a mulher o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas senhas salvo-condutos horas de recolher censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência·
Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua

Daniel Filipe (1925 - 1964)
"A Invenção do Amor e Outros Poemas", Lisboa, Presença, 1972