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quarta-feira, maio 03, 2006

A Invenção do Amor

Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor·
Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com carácter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana·
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado·
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo·
Um homem e uma mulher um cartaz denuncia colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura
A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los c
onvencê-los antes que seja tarde e a memória da infância nos jardins escondidos acorde a tolerância no coração das pessoas
Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros
É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo
A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta·
...
Procurem a mulher o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas senhas salvo-condutos horas de recolher censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência·
Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua

Daniel Filipe (1925 - 1964)
"A Invenção do Amor e Outros Poemas", Lisboa, Presença, 1972

$BlogItemCommentCount$>Inventaram o Amor:

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